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Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
Aviso aos Navegantes
AN Original
2022-12-21
Por Miguel Borba de Sá

Uma vez confirmada a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro, alguns comentaristas políticos portugueses entregaram-se a uma gozação fácil, mas de gosto duvidoso. Vozes influentes na opinião pública, como Inês Pedrosa, disseram, logo após os resultados, coisas do tipo:

“Aviso aos bolsonaristas que estejam a fazer as malas: em Portugal aborto e casamento gay são legais, a escola ensina igualdade de gênero e o governo é socialista. Por favor, não venham para cá. Agradecida”.

Poder-se-ia ter acrescentado outros itens que certamente causam pavor, é verdade, a muitos eleitores de Bolsonaro. No entanto, tais verdades escondem uma outra, ainda mais profunda, que precisa ser revelada naquilo que é: uma reafirmação do imaginário colonial que, infelizmente, ainda informa boa parte da intelectualidade lusitana, até mesmo os setores que se pretendem progressistas. Segundo este imaginário, as ameaças à boa vida na metrópole vêm sempre das colônias (ou ex-colônias). O perigo é exterior, notadamente na forma de povos bárbaros, com costumes e mentalidades arcaicas, que põem em risco, por sua mera presença, a iluminada sociedade europeia, supostamente livre de máculas políticas ou sociais, até que sejam invadidas por selvagens vindos do Sul global. A identidade desta ameaça exterior pode variar, desde imigrantes islâmicos que não se adaptam à ‘nossa’ cultura, ciganos assustadores que vivem dos benefícios do ‘nosso’ Estado ou, atualmente, a figura do bolsonarista obscurantista, ultramontano e ultraconservador. A estrutura deste esquema mental, no entanto, permanece a mesma desde a era colonial até os dias atuais.

Foto: Diário de Notícias, 30 de Outubro de 2020

Assim, tendo em vista este “aviso aos bolsonaristas”, é preciso fazer também um aviso aos navegantes lusos que estão recorrentemente a (re)descobrir seres bárbaros no Brasil: parem com isto. Apenas parem. Em vez de reiterar um imaginário colonial que somente enxerga ameaças exteriores (e subalternas) à civilização lusitana, que se esmera em evitar a contaminação da saudável vida política portuguesa por uma horda selvática, faziam bem se invertessem a mirada analítica para suas barbaridades autóctones, como sugerem as abordagens decoloniais. Afinal, não é preciso que nenhum bolsonarista fanático aterrize em Portugal para que a Igreja Católica (aquela grande parceira da empresa colonial) continue a abusar de menores e que o Presidente da República venha a público para relativizar tais crimes. Não foi necessário que nenhum fascista brasileiro estivesse aqui para que a extrema-direita portuguesa tenha irrompido com força no espectro político nos últimos anos, assim como não foi obra de nenhum extremista do Terceiro Mundo que um regime fascista tenha prosperado em Portugal por quase meio século (Gilberto Freyre deixou-se usar pelo salazarismo, mas ninguém em sã consciência poderia atribuir-lhe a responsabilidade pela instauração ou longevidade do Estado Novo em Portugal).

Tampouco é preciso que algum brasileiro neonazista tenha aqui pisado para que agentes do SEF tenham espancado até a morte um cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa. Não eram bolsonaristas aqueles latifundiários que recentemente escravizavam nepaleses no Alentejo. Tudo isso é obra e graça de fatores endógenos, não de alienígenas malfeitores vindos do Sul. A lista poderia continuar sem citar um nome sequer de origem colonizada como fonte dos reais perigos que cotidianamente assolam a democracia portuguesa.

Mais ainda, o abandono do imaginário colonial permitirá investigar a participação de cidadãos portugueses no multifacetado jogo de forças que contribuiu para fazer prosperar o bolsonarismo no Brasil. Afinal, as condições de possibilidade de uma tal infâmia política de cunho militarista e defensor da ‘lei e ordem’ seriam menores não fosse a corrupção selvagem da qual participam banqueiros portugueses na máfia de transportes do Rio de Janeiro; não fosse a barbárie causada pelo tráfico de cocaína, armas e dinheiro transportada em aviões particulares de empresários lusitanos descobertos pela polícia de São Paulo; ou pela incivilidade representada pela exploração sexual de menores em Fortaleza, e outras capitais brasileiras, onde voos fretados advindos de Portugal contribuem para a manter estável a demanda por este tipo de crime. Uma pergunta interessante, nesse contexto, seria: qual o montante de financiamento para as campanhas de Bolsonaro feito por homens de negócios luso-brasileiros nas duas últimas eleições? Esta investigação ninguém parece interessado em realizar.

Tal imaginário colonial não conseguirá desencorajar a vinda de bolsonaristas abastados, geralmente bem-vindos em Portugal, aliás. Ao revés, o único resultado concreto desta prática discursiva calcada no medo frente à periferia global (ecoando as palavras do chefe da diplomacia europeia sobre o ‘jardim europeu’ ameaçado pela ‘selva’ do lado de fora) é aumentar ainda mais o estigma contra os brasileiros pobres em Portugal, que já sofrem discriminações, xenofobia e racismo - sendo bolsonaristas ou não. Estas violências estruturais e culturais, alimentadas por tal imaginário, certamente afetam de forma desigual aos diferentes tipos de brasileiros que vivem no país. Por outro aldo, tal imaginário conduz a efeitos não apenas sobre brasileiros, mas também sobre moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos, ciganos e todos aqueles que, independente de nacionalidade, são encarados como o Outro indesejado em território nacional - até quando são portugueses, porém não-brancos, como revelado por inúmeros casos de violência policial, prisional e assédio laboral.

Por tais razões, é urgente que esta prática discursiva seja encerrada de uma vez por todas, especialmente pela intelectualidade progressista que, ao reproduzi-la, termina por fornecer o substrato que alimenta os setores decididamente conservadores e seus grupos neofascistas, como aqueles que pintavam os muros da Universidade Católica de Lisboa com dizeres do tipo: “Zucas voltem para as favelas; pretos voltem para a África”. O ‘zucas’ desta inscrição provavelmente não estava referido a nenhum bolsonarista branco, rico ou cristão, mas a adesão ao discurso-mor do voltem para lá/não venham para cá ajuda a intensificar os piores efeitos justamente sobre os alvos preferenciais daqueles que escrevem tais palavras.

Portugal possui largas tradições de fanatismo político, de conservadorismo religioso, de neoliberalismo selvagem ou de autoritarismos múltiplos que dispensam o auxílio das atuais elites bolsonaristas para existir. É uma pena que tenham o apoio inesperado de quem a elas sempre se opôs. Numa tal situação, não é suficiente, ao reafirmar o imaginário colonial, também dizer: “Ah, mas eu tenho um amigo brasileiro”, ou “eu adoro ir ao Brasil”, da mesma forma que possuir um amigo gay, ou negro, não exime de responsabilidade a ninguém que insista na reprodução de uma prática social homofóbica ou racista. Não é sobre tratar bem ou mal a um determinado indivíduo pessoalmente, mas sobre a contribuição discursiva para que o conjunto deles seja maltratado socialmente de forma permanente, seja por outros indivíduos, pelo Estado ou por instituições privadas. O lema, bem conhecido, que os setores xenófobos manejam há décadas na Europa é justamente o de que não se opõem à imigração em si, mas que preferem ‘imigrantes qualificados’: agora politicamente qualificados também, ao que parece.

Em vez de policiar as bordas coloniais do império perdido em busca de preservar o próprio senso de modernidade - e assim criar espaço para estigmas perigosos, ao dar força motriz ao eterno descobrimento de um Brasil povoado por gentios atrasados e ameaçadores – os navegantes progressistas da caravela de gozações em voga poderiam levar a sério a imbricação histórica entre suas respetivas elites e forjar estratégias de lutas comuns contra a ascensão mundial da direita radical. Mas isso terá de passar, necessariamente, pela descolonização de um imaginário que insiste na exteriorização subalternizada da ameaça. Agradecido.


Miguel Borba de Sá é Professor Auxiliar Convidado na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; é conselheiro político do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul – Instituto PACS.