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Existem, entre outros, dois eixos particularmente proveitosos para interrogar a interseção entre o feminismo e a utopia. O primeiro, e talvez mais intuitivo, é pensar como o feminismo fecunda um horizonte alternativo, isto é, como permite desnaturalizar as relações de exploração capitalista patriarcal assim como todas as formas de opressão que lhe estão subsumidas, ao mesmo tempo que afirma os contornos de um futuro alternativo e os caminhos a trilhar. O segundo diz respeito ao facto de o feminismo e o pensamento utópico parecerem encontrar-se atualmente numa encruzilhada histórica paradoxal: nunca feminismo e a utopia (feminista ou não) foram tão apelativos e tão frequentemente enunciados embora, não raras vezes, reivindicados numa base manifestamente antifeminista e antiutópica. Comecemos pelo segundo eixo de análise.
Seguramente não há memória na história recente da quantidade de exorações à aceitação da diversidade sexual e de género, à libertação das mulheres da atividade doméstica, à igualdade no trabalho e fora dele, à emancipação sexual feminina, aos direitos LGBTIQ+, à condenação categórica da violência doméstica. Esta retórica emancipatória de libertação feminina e, em certa medida, de purple e pinkwashing dá frequentemente a cara por um neoliberalismo progressista e multicultural que acomoda uma narrativa nada utópica, que anuncia a fortuna que é ser-se mulher, ou minoria sexual, nas sociedades atuais ocidentais capitalistas. É uma espécie de última mulher, numa adaptação do Fim da História e o Último Homem de Francis Fukuyama em versão feminista. Chega-se, pois, ao momento da História em que ser-se mulher nunca foi tão emancipador e possante, em que finalmente podem-se formalizar plenamente todas as reivindicações tradicionalmente associadas ao movimento feminista. Este reconhecimento formal tende a acompanhar-se de uma máxima de dignidade humana que é orgulhosamente cega, que já não se divide por género, nem etnia, nem raça. Na lógica dominante capitalista, isto significa que se pode despojar e explorar a força de trabalho sem olhar a quem ao mesmo tempo que se eludem os conflitos sociais e os mecanismos opressivos nela contidos. Longe parece estar o tempo em que se precisava de estabelecer uma superioridade sociocultural clara em relação às classes exploradas e oprimidas, desde que obviamente a possibilidade de explorá-las não seja esmiuçada, desde que as diferenças materiais que organizam a produção do mundo permaneçam escamoteadas e estabilizadas a favor da acumulação de capital.
Se vivemos no melhor mundo possível, aquele que melhor parece dignificar a história das lutas feministas, então para quê almejar um futuro? Qual o intuito de amplificar possibilidades de ação, norteadas por um horizonte político utópico, se a história foi satisfeita? A noção de fim da história traduz precisamente a vivência histórica-temporal contemporânea em que o futuro aparece apenas como um conjunto de atualizações melhoradas do hoje (cf. Eagleton), em que o escatológico já sucedeu, em que o curso da história interrompe-se no momento presente, em que parece que todos os espaços-tempos caminhavam em direção ao que existe hoje. Nesta lógica falar de utopia na atualidade torna-se nebuloso e patético. A única possibilidade será talvez uma certa utopia mínima (liberal) - eventual, parcial e/ou revogável das relações sociais – ao estilo de John Rawls e Karl Popper. Para eles, a utopia mínima é uma necessidade constituinte da sociedade liberal aberta na qual eventualmente alguns interesses díspares colidem e em que são necessárias negociações e atualizações como forma de controlo social, para que não se quebre precisamente a ordem social estabelecida. Esta utopia liberal é uma utopia conservadora. Encontramos vários ecos desta postura em discursos populares bem disseminados, principalmente naqueles em que se veicula um certo orgulho em ser-se feminista ou em se envergar o feminismo como parte integrante de um estatuto social melhorado. Todas temos agora uma veia feminista pois sabemos que os interesses das mulheres e das minorias sexuais, entre outras, afinal importam e que a sua identidade como tal pode ser afirmada dentro de limites de igualdade formal liberal. Este é, finalmente, também um discurso que vê no feminismo uma inspiração abstrata e fetichista, que nega usualmente a sua historicidade e que possibilita que mulheres como Simone de Beauvoir e Margaret Thatcher possam ser reunidas sob uma mesma chancela de inspirações feministas, como mulheres influentes, famosas e reconhecidas internacionalmente – precisamente desde uma filósofa feminista incontornável até à mulher que gritou ao mundo a morte da alternativa, que é em bom rigor também a morte do feminismo ele próprio.
Porém, frente a esta maré de enunciações de um certo feel-good feminism, eis que surgem fortes reservas em relação ao que cabe como válido discutir no feminismo de forma a impedir a sua radicalização inútil, o precipitar do seu caráter totalizador ou irascível, mantendo-o refém da utopia liberal conservadora. Várias destas preocupações surgem de perspetivas que se autoidentificam como feministas, alegadamente desde um núcleo crítico de um feminismo contra o totalitarismo e promotor da igualdade democrática. Camille Paglia é uma conhecida representante, que vocifera a pertinência atual do feminismo, mas de um outro feminismo, moderado e tolerante à liberdade de expressão, que respeite os homens e que os escute, que admire os seus grandes feitos e que exija uma oportunidade para os igualar. A arma de arremesso é conhecida: a mal-afamada tendência de correção política feminista, que complexifica, anatematiza e que melindra potenciais valiosos aliadas e aliados de um movimento democrático.
Há uns anos foi lançada, em França, no Le Journal du Dimanche, uma entrevista à feminista Elisabeth Badinter em que pode ler-se sobre a ameaça do neofeminismo guerreiro. A filósofa coloca o tema da guerra dos sexos como um elemento central articulador das visões feministas atuais, referindo-se a movimentos como MeToo e, de forma mais indefinida, a jovens radicalizadas em novos movimentos sociais. Não atendem a meios e são binárias, clama Badinter, visto que opõem-se aos homens como predadores sexuais em potência e menosprezam a violência feminina dado que as mulheres são vítimas inatas. Outro exemplo polémico, na página espanhola Contexto y Acción, mais antigo em junho de 2018, publicado por Loola Pérez. A autora acusa o feminismo – remetendo-se a um artigo anterior que aborda a temática do consentimento sexual, da cultura de violação e do caso de La Manada - de puritanismo, de limitar os desejos sexuais e de des-erotizar a dinâmica sexual. Ainda que estas críticas possam ser legítimas em relação ao feminismo radical, na verdade a crítica à hipostasia do sexo/género tende a tornar-se indistinta de um argumento apologético da utopia liberal conservadora contra o suposto totalitarismo feminista.
Todos estes argumentos não são novos e relevam posturas concorrentes que povoam o movimento feminista. De forma expectável, as questões da sexualidade e da igualdade formal, que sempre foram tendencialmente o núcleo duro e restrito do feminismo liberal, são priorizadas nestes argumentos. O problema é que tanto a postura de Paglia, como o artigo de Badinter e o de Pérez, apresentam argumentos burdos de exaltação de uma libertação feminina consumada e de uma necessidade de preservar a igualdade entre sexos. Todas elas reduzem a complexidade de temas como o assédio sexual, as violações sexuais, a violência na intimidade, a vivência plena da sexualidade, o consentimento e iniciativa sexual, a uma questão voluntária e de escolha plena que pode ser exercida de igual modo por mulheres e homens.
Supostamente no combate contra-argumentos biologicistas e moralistas, o feminismo liberal recria os seus velhos inimigos políticos (i.e., totalitarismo, política radical) a partir de uma suposta divisão interna demolidora no feminismo, entre um feminismo não democrático (i.e., moralista, vitimizador, que reitera os homens como o inimigo principal) e o feminismo democrático (i.e., moderado, libertador das mulheres e dos homens, progressista). Igualmente torna-se possível redirecionar o centro do debate feminista para uma certa masculinidade ferida - que vai perdendo centralidade inclusive na construção de classe, mas que busca compensar-se nas questões de ordem sexual com uma narrativa de adversário ofendido. tal como analisado por Fernanda Rodriguez. Propaga-se ainda a ideologia neoliberal do livre arbítrio sexual e reduz-se a tensão quase ubíqua entre liberdade-ameaça sexual, vivida pela maior parte das mulheres e grupos oprimidos, a uma mera questão de quem acredita e se inspira, ou não, na emancipação sexual das mulheres. Também nos leva a acreditar que os temas da sexualidade e da violência de género, são o único eixo de intervenção do feminismo e que as tensões existentes ocorrem nestes limites, sem problematizar nem visibilizar outras perspetivas e controvérsias feministas, como por exemplo trazendo a debate um feminismo socialista e/ou marxista. Às custas da caricaturização do feminismo e dos seus debates históricos, abre-se assim um espaço de disputa que visa recalibrar o imaginário feminista, que corre o risco de morrer de êxito: a sua tão-frequente enunciação versa uma razão liberal, que é precisamente antítese da utopia.
Mónica Soares é mestre em psicologia da justiça (FEP-UCP) e estudante de doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.