A forma como as práticas artísticas estimulam aprendizagens informais entre os jovens da periferia de Lisboa é a principal preocupação deste artigo. A partir de três bairros “racializados” – Arrentela, Cova da Moura e Quinta do Mocho –, enquadramos algumas das mais inovadoras produções artístico-culturais para debater a escola, o racismo, as desigualdades e os engajamentos político-cidadão. Numa Afro-Lisboa que tarda em assumir a agência das populações afrodescendentes, arte e cultura se tornam instrumentos privilegiados para reconfigurar o papel da “raça” nas questões relacionadas à cidadania, marginalidade e educação no Portugal pós-colonial.
O presente artigo debate as configurações identitárias pós-coloniais em Portugal, priorizando produções artísticas e culturais que nos seus “modos de fazer” (Certeau, 1980) proporcionam aprendizagens informais1. Centramos o olhar em três bairros “periféricos” da Área Metropolitana de Lisboa – Arrentela (Seixal), Cova da Moura (Amadora) e Quinta do Mocho (Loures) – marcados pela presença de populações de origem africana. Observamos como a criatividade urbana desafia a compreensão simples e pouco problematizada da relação do país com o seu passado colonial, ganhando terreno expressões artístico-culturais que também atuam como pedagogias alternativas. Associados à violência e à marginalidade no imaginário português, os três bairros racializados são hoje contextos ativos de produção cultural, particularmente férteis no que concerne à música e à arte urbana. Analisar as contradições provocadas por esse processo, bem como os capitais culturais proporcionados pela adesão dos jovens a essas mesmas práticas, é a principal preocupação deste ensaio.
Menino a rabiscar, obra de Adres. Quinta do Mocho.
A pós-colonialidade portuguesa caracteriza-se por algumas particularidades geradas pelo seu longo passado colonial e as guerras de libertação nacional em África. No entanto, os processos de violência que marcaram essa experiência colonial têm sido obscurecidos pela teoria luso-tropicalista de Gilberto Freyre (2006), legitimadora de um discurso institucional enaltecedor da excepcionalidade moral e cultural de Portugal (Vala, et al., 1999; Vale de Almeida, 2000). Tal narrativa de excepcionalidade, contudo, está a ser questionada pelo impacto das migrações, por relações interculturais, pela emergência de coletivos antirracistas e por uma estética negra pujante (Arenas, 2015; Raposo, 2018). Esses fenómenos inserem o tema do racismo no debate público ao mesmo tempo em que ajudam na construção de uma política de representação que busca cidadania social e cultural entre os afrodescendentes. As expressões artísticas, em particular a música rap, como veremos, são particularmente eloquentes neste sentido.
Articulo neste artigo pesquisas realizadas em diferentes momentos, desde a investigação de mestrado sobre um coletivo de rappers da Arrentela (Raposo; 2007; Raposo, 2010) até trabalhos mais recentes sobre artistas imigrantes (Ferro & Raposo, 2016) e a arte urbana na Quinta do Mocho (Raposo, 2019). Em todas essas pesquisas a etnografia foi decisiva para a imersão no terreno, permitindo a minha familiarização com as práticas artísticas e os estilos de vida de uma juventude negra tantas vezes representada no papel de bode expiatório dos problemas associados à violência urbana (Raposo, et al. 2019). As entrevistas aqui apresentadas alimentam-se de “mergulhos” prolongados nos bairros citados , a que se soma um trabalho exploratório de análise de conteúdo de letras musicais e reflexão sobre o impacto das novas tecnologias nas produções artístico-culturais. Antes de examinar alguns casos em específico, é necessária uma breve reflexão sobre os usos da cultura no contexto contemporâneo português.
1. Produção cultural numa cidade pós-colonial
As produções artístico-culturais que analisamos enquadram-se na conjuntura de mudança vivida na Lisboa contemporânea. Uma vez marginalizada e ocultada, a presença de um “imaginário africanizado”, tanto na paisagem artística quanto nas políticas culturais e turísticas, desempenha agora um papel central na definição da imagem da cidade. Nas últimas décadas, Lisboa consolidou uma posição privilegiada no ranking global das cidades turísticas e criativas2. Este processo de marketing urbano resultou numa alteração de marca (rebranding) de velha metrópole para uma cidade cosmopolita e multicultural dotada de uma cena artística vibrante. Nesse contexto, as produções artísticas ligadas aos referentes africanos ocupam um papel central, sendo responsáveis pela configuração de uma “Afro-Lisboa” que fomenta a internacionalização e diversificação da oferta cultural da cidade.
A ideia de Afro-Lisboa quer chamar a atenção não apenas para a forte presença de populações negras nos territórios que rodeiam a capital portuguesa, mas, em especial, para as atrações artísticas que articulam a imagem de uma Lisboa multicultural. As novas formas de produções culturais negras que emergem de fluxos transnacionais entre África, Brasil e Europa tornaram-se uma mais-valia para o desenvolvimento económico da cidade, promovendo Lisboa na competição global por investimento. A venda de uma Lisboa pós-colonial enquanto mercadoria valorizada pelos interesses empresariais globalizados não pode ser dissociada do paradigma de “cidade criativa”, em que arte e cultura passaram a ser encaradas pela administração pública como motores de revitalização socioeconómica e regeneração urbana (Landry, 2012; Mould, 2015; Guinard & Margier, 2018).
As transformações sociais decorrentes de uma sociedade cada vez mais interétnica colocaram em evidência vários géneros da música africana dita “tradicional” – morna, koladeira, funaná, kizomba, entre outros (Varela, et al. 2018; Sieber, 2005) – e impulsionaram expressões musicais pautadas por símbolos associados a uma “cultura negra3” transnacional (Sansone, 2007). A centralidade de Lisboa nos processos criativos que decorrem da ampliação das trocas culturais por todo o Atlântico Negro (Gilroy, 2001) propiciou, ainda, o aparecimento de novos ritmos musicais. Tal processo apoia-se nos meios digitais – computadores pessoais, samplers, redes sociais, websites – para circular e transpor o bloqueio da indústria cultural (Aderaldo & Raposo, 2016). Isto é evidente no ritmo batida (ou afro-house), no rap crioulo4 e outros estilos que mesclam sonoridades africanas com a música eletrónica. Com reproduções contadas aos milhões no Youtube e presença garantida em festivais de música em Portugal e no estrangeiro, os ritmos dessa “Nova Lisboa5” reproduz-se de forma diversa nas suas periferias, transmitindo saberes a partir de lugares sociais à margem do poder e numa perspetiva decolonial (Mignolo, 2007). Mas a Afro-Lisboa não exclui contradições. Conforme Joana Gorjão Henriques argumenta:
“O fato de, ainda hoje, não existir qualquer correspondência entre o número de negros que vemos na rua e o número de negros em lugares de liderança na sociedade é, no mínimo, surpreendente. A ausência de representatividade de uma fatia expressiva da sociedade portuguesa – fatia essa usada como bandeira de cosmopolitismo da população por algumas entidades oficiais – espelha um sistema que discrimina pela cor da pele” (2016: 11-12).
Passadas mais de quatro décadas desde o fim da presença colonial portuguesa em África, muitos portugueses negros ainda são considerados “outros”, sendo esse processo, como argumentou Inocência Mata (2006), de estranhamento e banimento. Embora Portugal tenha começado a olhar para a sua própria identidade “com olhos multiculturais”, uma parte substancial da realidade sociocultural do país continua a ser invisibilizada ou entendida como alheia à sociedade portuguesa6. A consequência desse processo é que vários elementos associados à cultura “africana” ainda são considerados exóticos ou marginais, mesmo quando produzidos nos espaços da “metrópole” por populações nascidas em Portugal ou que habitam o país há décadas. Apesar de permanecerem desprestigiadas e marginalizadas, as produções artístico-culturais dessas populações estão por trás de várias das transformações urbanas e culturais mais significativas que a Lisboa contemporânea está a experimentar. Algumas delas serão analisadas neste texto, estando inseridas nos processos acima retratados.
2. RAPensar a escola7
O lado sombrio da Afro-Lisboa oculta e naturaliza processos de exclusão: a criminalização dos espaços periféricos ocorre em simultâneo com uma desigualdade de oportunidades que afeta negras e negros desde a infância. Apesar das dificuldades em obter dados estatísticos sobre esta realidade8, algumas pesquisas são reveladoras das injustiças que permeiam, por exemplo, a educação pública em Portugal. Nos primeiros anos do ensino básico, a taxa de reprovação das crianças nascidas nos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP) é mais de três vezes superior à dos portugueses (16% vs 5% em 2013/2014) (Abrantes e Roldão, 2016). No ensino secundário, a esmagadora maioria dos alunos dos PALOP frequenta cursos profissionais (80% vs. 43% de estudantes portugueses em 2013/2014), destino menos prestigiado do que os cursos regulares direcionados ao ingresso na universidade. Assim, a forte sub-representação dos afrodescendentes no ensino superior (16% vs. 34% dos portugueses, em 2011) não é um acaso da educação pública em Portugal (Seabra et al., 2016; Roldão, 2015). Pelo contrário, o sistema educativo está organizado para ser desigual, ao filtrar e selecionar aqueles que vão conseguir ir além da escolaridade obrigatória.
Nas entrevistas e conversas realizadas com jovens da Arrentela9, a maioria afirmava não gostar da escola. Diziam que as aulas eram chatas, o programa curricular afastado dos seus interesses e os professores pouco dedicados aos alunos. A escassa identificação desses jovens com a escola poderá ser o reflexo, entre outros motivos, de um conhecimento limitado da condição juvenil por parte das instituições de ensino. Ao não articular o programa escolar com as suas experiências em outros ambientes sociais, a escola demonstra-se descontextualizada frente aos seus anseios e necessidades. As dificuldades e os desafios enfrentados pelos jovens no seu dia a dia, assim como a riqueza das suas expressões culturais, em que a música rap é apenas um exemplo, são ignorados ou, no mínimo, pouco aproveitados enquanto material didático. Temas relacionados com os problemas concretos dos alunos, como pobreza, sexualidade, violência, drogas, lazer, racismo ou história da África raramente são abordadas em sala de aula. Fechada em si mesma, a escola tem dificuldade em abrir-se às experiências juvenis desenvolvidas fora dos seus muros. Esta realidade faz com que parte significativa do percurso escolar dos jovens desfavorecidos seja marcada pela desmotivação, em consequência de uma sucessão de experiências negativas, agravadas pelo fato de serem afrodescendentes. Esta foi a perspetiva encontrada nos textos escritos por alguns jovens negros do 7° ano da Escola Secundária José Afonso, na Arrentela. Numa atividade desenvolvida por uma associação de bairro sobre o significado da educação, um deles escreveu:
Educação para mim começa em casa, não na escola. A escola não fala acerca das nossas origens, só fala que fomos colonizados e escravizados. Para mim um Preto tem que saber que ele é Preto, não ficar a dar para pataqueiro [estúpido] fazendo-se de Tuga [português]. És preto e pronto, não passas disso. Quando dão aquelas piadas sem graça na escola em relação aos Pretos tu só tens que mandar eles à merda e ter orgulho de ser Preto. Se na escola a tua educação é assim, só tens a hipótese de ser racista. A educação faz a pessoa.
Como as referências culturais dos países de origem dos seus pais são pouco valorizadas, não é de espantar a pouca identificação desse jovem com o conteúdo educacional transmitido pelas instituições de ensino. Para este jovem a escola tem um ambiente racista, cujo programa pedagógico não abarca as suas preocupações e não amplia a sua condição de ser humano com uma história própria e anseios específicos. Pelo contrário, os seus antepassados são apresentados como escravos, meros objetos sem valor, fazendo da sua história um motivo de vergonha e não de orgulho. Esta perspetiva foi resumida da seguinte forma por uma jovem líder comunitária do bairro:
Nas escolas, esses miúdos só sabem que os antepassados deles foram escravos. E pá, não sabem mais nada! É a única coisa que se diz nas escolas: que foram escravos. E toda a gente sabe que não foi assim. Quem estudou mais e foi mais além sabe que nossos antepassados não foram só escravos. Porque é que os nossos miúdos, e os pais deles não podem vir a saber mais coisas sobre África? [Shenya, 22/02/2016]
Outro jovem, também do 7° ano da Escola Secundária José Afonso, preferiu fazer uma letra de rap sobre o tema da educação, em que ressalta o ambiente de violência em que está imerso, a falta de perspetivas e o distanciamento da escola perante as suas experiências reais.
Como é que posso citar Camões e Vicente impingidos pela escola?/ Se somos criados pela rua com drogas, polícia brutal, tudo à melodia da pistola/ Mãe sente, bairro não mente, mente bem quente, ciente que o final é a prisão ou morte de repente/ Então para quê esta luta permanente se o desfecho está preso com o mal?/ Revolta não vale, sonhos e ideais falecem, como Amílcar Cabral/ É bem real como alguém que a esta hora reflete numa cela/ Do Mirasquad à Arrentela
Nesta letra de rap podemos detetar o contraste entre a escola e o mundo real: Camões de um lado, a violência de outro. Há uma esquizofrenia óbvia entre estas duas instâncias: a escola de um lado, a vida de outro. Neste contexto, a escola ainda trata os alunos como meros espetadores com pouco direito à voz, não levando em conta a vida que levam lá fora. Os personagens históricos acabam por transformar-se em extraterrestres, com reduzida ligação ao mundo real. A escola não “desce à terra”, e não debate acontecimentos concretos da vida dos seus alunos, tal como omite figuras históricas de relevância para eles, como Amílcar Cabral ou Malcom X.
3. Expandindo a periferia
Tributo a Martin Luther King, obra de Odeith. Cova da Moura.
Embora a periferia de Lisboa continue a ser marcadas pelo estereótipo, bairros como Cova da Moura, Arrentela ou Quinta do Mocho têm ganho visibilidade por outras razões: a sua produção artístico-cultural. Por essa via, alguns dos seus moradores conectam-se a uma rede ampla de “artivistas10” que se expande para além das margens de Lisboa, acedendo a um conjunto de capitais culturais e simbólicos capazes de reposicioná-los enquanto agentes de uma Afro-Lisboa transnacional. Por outro lado, a transformação desses bairros em expoentes da criatividade musical e artística configura uma posição de força contra o racismo e os preconceitos que os associam à criminalidade. Nesse processo, vários jovens articulam estratégias de visibilidade e participação política que disputam os significados de ser negro e/ou africano em Portugal, afirmando uma “cidadania insurgente” (Holston, 2013). Esta contraria as visões hegemônicas sobre o seu lugar social, desafiando também os significados convencionais sobre a educação.
O rap produzido por jovens negros da periferia de Lisboa, cantado em português ou crioulo, é um dos estilos musicais mais dinâmicos da sociedade portuguesa, mobilizando artistas e uma legião de fãs que se utilizam das novas tecnologias de produção e divulgação para promover o seu trabalho. A poesia em crioulo ou português constitui matéria-prima para reinventarem a vida e projetarem-se de forma digna. Isto é particularmente eloquente na forma inventiva como fundem a música às artes visuais através dos videoclipes, quando vinculam mensagens de transformação social para denunciar o racismo e reivindicar um espaço de legitimidade na sociedade portuguesa. Com um discurso consciente e de valorização da negritude, muitos rappers negros da periferia de Lisboa afirmam uma estética insurgente que enobrecem áreas marginalizadas da cidade ao mesmo tempo que visibilizam uma presença negra e africana que tarda em ser reconhecida pelas instituições oficiais do Estado.
Ponto nevrálgico do circuito musical africano, a Cova da Moura é um local de densas sociabilidade e conexões artístico-culturais entre as populações afrodescendentes, nomeadamente de origem cabo-verdiana (Ferro & Raposo, 2016; Varela et al., 2018). Entre as gerações mais novas, a criação do Kova M Estúdio na Associação Cultural Moinho da Juventude, em 2009, desempenhou um importante papel no fortalecimento da produção musical dos jovens do bairro, que passaram a ter um local para gravar as suas músicas em condições semiprofissionais. Uma delas, chamada Kova M Fronta, foi tema do primeiro videoclipe de rap cantado em crioulo a ultrapassar um milhão de visualizações no YouTube. Lançada em 2012, esta música descreve em tom de desafio o clima de tensão permanente vivido pelos jovens do bairro devido às frequentes operações truculentas da polícia.
A homenagem à figura materna constitui outro dos temas recorrentes do rap negro da periferia de Lisboa11, o que talvez se explique pela centralidade das mães na educação das famílias oriundas das classes populares, mais expostas também à ausência paterna. É o que faz a música Mama Ka bo Tchora, da coletivo de rappers Kova M, ao expor os profundos laços afetivos entre mãe e filho no difícil momento em que este é preso. Como relata a música:
Ka bu txora mas mae e ka bu culpa si mis a nafa? Hoje é um bandido, bu poe na escola, mi nega studa. Mi começa furta, fuma ganza, bu dam tudo di bom pa bo criam dreto. (…) Mas ka bu txora mas mae e ka bu culpa, si emigraçon ka foi midjor soluçon pa um vida com menos dor, ka bu txora mas mae si mis a nafa? Cume 7 anos cana (é fudido). Disculpam pa tudo disiluson, pa tudo dor, pa tudo lagrimas kin poe ta corri na bu rostu. [Kova M, 2013 – Katana Produções12]
Um dos rappers que desempenharam um importante papel na criação do Kova M Estúdio chama-se Strike, cuja participação num criativo circuito de produção artística ligado à cultura hip-hop13 encorajou o seu engajamento político-associativo. Poucos anos após emigrar de Angola e estabelecer-se no bairro, Strike foi convidado, em meados da década de 1990, a fazer parte de uma das bandas precursoras do rap na Cova da Moura: Menace Society. Ao longo do seu percurso artístico, integrou projetos musicais contra o racismo, realizou intercâmbios culturais fora do bairro com jovens de várias nacionalidades, participou de sessões de formação na Associação Cultural Moinho da Juventude, acumulando capitais culturais e simbólicos que lhe alargaram os horizontes. A aprendizagem informal trazida por essas experiências trouxe-lhe disposições (ou habitus) que facilitaram o seu acesso às múltiplas redes de significado presentes na cidade, incentivando-o a retomar os estudos. A conclusão do curso de web design coincidiu com o projeto do Moinho da Juventude de construir uma sala de computadores, propiciando a sua contratação como monitor de informática. Identificado pelos moradores como líder comunitário, Strike desempenhou papel ativo na mobilização contra o racismo e a violência policial de que foram vítimas seis jovens do bairro em 2015, dois deles membros da direção daquela associação14. Mesmo com 43 anos, Strike continua a ser uma referência para os jovens da Cova da Moura, sendo o principal organizador da mais célebre festa realizada num bairro da periferia de Lisboa: Kova M Festival.
Tal como na Cova da Moura, a música rap exerce uma forte centralidade nas sociabilidades juvenis da Arrentela, concebendo rimas com conteúdos que os ajudam a refletir sobre si próprios e o mundo que os rodeia. Criador de um espaço de autorreconhecimento a estimular o espírito crítico, o rap produzido pelos jovens da Arrentela confere-lhes uma identidade positiva frente ao racismo quotidiano, incentivando o engajamento político-associativo. A emergência da Khapaz, uma Associação Cultural de Jovens Afrodescendentes localizada na Arrentela, só pode ser compreendida a partir do envolvimento desses jovens com essa cultura urbana, pois foi a partir dela que se sentiram motivados a organizarem-se localmente. Como explica o rapper Chullage, um dos fundadores da associação:
(…) Foi mesmo através do rap que eu conheci um mundo de gente. Também foi através da associação [Khapaz]. Eu fiz uma associação, ou me juntei com brothers para fazer uma associação por aquilo que o rap me educou, pela necessidade que eu aprendi com o rap. [Chullage, 18/08/2005]
A pedagogia informal trazida pela adesão ao rap fomentou nos jovens um desassossego em relação às injustiças que marcavam o seu território – pobreza, racismo, violência policial –, incentivando muitos deles a formar a Khapaz. Nessa associação organizaram debates e exibiram filmes sobre temas que lhes interessavam, como o hip-hop e a história da África, e criaram projetos pedagógicos para consciencializar os seus pares sobre as suas origens étnicos-raciais. A Afroteka, Kau di Mindjer e a Sala de Ensaio15 foram alguns dos projetos inovadores desenvolvidos nessa Associação, cuja finalidade era aprofundar o autoconhecimento, criar atividades culturais, sobretudo ligadas ao hip-hop, denunciar o racismo e contrapor-se à posição de subalternidade a que eram relegados.
Eles têm muito a dizer, mas são pouco ouvidos pelas vias institucionais pelas quais se transmite e negoceia o poder. A escola é uma dessas instituições porque reproduz as injustiças de uma sociedade neoliberal assente na desigualdade estrutural que tem no racismo uma das suas “correias de transmissão”. O sistema de ensino foi duramente criticado por Chullage na música Knowledge & Control:
(…) na sala de aula tem-nos a abandoná-la/ em buska de paka mais depressa/ além disso a matéria racista do programa é algo k não nos interessa/ são páginas onde a mentira está impressa/ onde a verdade sobre a história da nossa gente não está expressa/ mas o problema é k kom essa/ mentira k no merkkkado de trabalho se ingressa/ mas mesmo kom o kurríkulo kompleto a kor ainda nos stressa/ verdade é essa/ kom ou sem eskkkola vives num ringue/ mas prokura a tua edukação, e konhece akela do inimigo, pk é isso k te distingue/
entre o brotha k kombate o inimigo, e akele k o adversário extingue/de nada vale kash ou respeito kd a kabeça não manda bling. [Knowledge & Control, Rapensar 2004 – Chullage16]
O teor de resistência das músicas feitas pelos jovens da Arrentela e Cova da Moura põe a nu o poder político e educativo do rap feito por jovens negros das periferias, cuja postura é de crítica a uma sociedade que os marginaliza. Nesse processo, entram em choque direto com os projetos de cidadania de base luso-tropicalista (Pardue, 2015), pois não escondem o racismo e as suas difíceis condições de vida. Frente a instituições insensíveis aos seus anseios e interesses, este estilo musical torna-se um instrumento privilegiado de reflexão sobre o seu lugar no mundo, constituindo-se como uma estética insurgente que os ajuda a reinventarem-se enquanto jovens negros da periferia a partir das suas virtudes.
Transformada num território proeminente de arte urbana, a Quinta do Mocho conta hoje com mais de 100 murais artísticos em grande escala a decorar os seus prédios de habitação social17, alguns deles assinados por renomados artistas portugueses como Odeith, Bordalo II e Vhils. O impacto foi de tal ordem que não é exagero afirmar que a paisagem visual de Lisboa não pode ser hoje vislumbrada sem incluir a arte urbana em espaços periféricos como a Quinta do Mocho18. As obras inscritas nesse bairro estão bem preservadas, aparecem em guias turísticos nacionais e internacionais e modelam a imagem de uma cidade cosmopolita e multicultural. A arte urbana também desempenha um papel importante nos significados atribuídos à Quinta do Mocho, pois este bairro deixou de estar vinculado exclusivamente ao tema da violência, passando a ser apontada pelos meios de comunicação como espaço de referência cultural no país. A melhor apreciação da Quinta do Mocho não pode ser descurada do papel dos guias comunitários, responsáveis por dar visibilidade a essa política pública e trazer turistas ao bairro. Durante as visitas, os guias elucidam o significado simbólico por detrás de cada obra, ao mesmo tempo em que expõem a história do bairro e o quotidiano dos seus moradores (Raposo, 2019).
O respeito entre Povos, obra de LS. Marvila. Fotografia de Bruno Cunha.
A capacidade dos guias de promoverem estratégias de visibilidade para um bairro entendido como “problemático” com vista a venderem “experiências auténticas” a turistas (Andron, 2018) fazem deles verdadeiros go-betweens (Velho, 2001). Isto é, “mediadores que encurtam a distância social e simbólica entre a cidade e as suas margens” (Raposo, 2016:797). Porta-vozes dos artistas nos seus processos criativos, os guias comunitários realizam uma “curadoria informal” nas visitas que organizam (Andron, 2018), contando histórias sobre os murais de arte urbana que não raramente dialogam com o ambiente multicultural do bairro. É o caso da pintura do líder africano Amílcar Cabral e de várias personagens femininas, entre as quais uma mulher negra a retirar, de forma alegórica, uma máscara branca. Realizada pelo artista Nomen, esta obra era associada pelos guias ao estigma territorial a que os moradores do bairro estavam expostos quotidianamente. A transformação de um prédio numa caixa de cartão (para expedição) virada ao contrário era interpretada como uma denúncia à forma como os imigrantes são “largados” em áreas negligenciadas da cidade. Com o continente africano e a palavra “África” em destaque, vê-se, nesse mesmo mural, um fato-macaco ao lado de um avental doméstico, símbolos dos trabalhos mais comuns exercidos por homens (construção civil) e mulheres (limpeza) da Quinta do Mocho. A história desse mural foi contada numa das visitas da seguinte forma por um dos guias:
Nós sabemos que muitas das coisas boas que Portugal tem, desde a Ponte Vasco da Gama à Expo, foi feita à custa de muita imigração, muito trabalho duro, não é?! E isso também foi importante. Por isso que o nome da obra é “Worker Ghetto Box”, e simboliza a África e representa o papel dos imigrantes em Portugal. [Kedy, 30/04/2016].
Nesse trabalho de tradução das obras pictóricas, os guias comunitários veiculam novos significados ao bairro, sendo protagonistas de uma “requalificação discursiva” que utiliza ícones de uma identidade negra e africana (Raposo, 2018:127). A inversão de papéis a que estamos habituados é uma das características mais interessantes dessas visitas, pois são populações historicamente alijadas dos espaços de poder a assumir a função de intérprete da realidade para um público maioritariamente branco e de meia-idade. A aprendizagem informal e o exercício de alteridade implícitos nessas trocas simbólicas decompõem estereótipos racistas e reposicionam fronteiras, afirmando uma Afro-Lisboa que teima em sair da penumbra.
Reflexões finais / Conclusões
A crescente fusão entre arte, educação e política produzida pela juventude da periferia de Lisboa tem provocado verdadeiros “curto-circuitos” nas visões conservadoras que insistem em não problematizar os efeitos do colonialismo, a invisibilidade dos afrodescendentes ou as injustiças do racismo institucional na paisagem pós-colonial portuguesa. Novos engajamentos político-associativos são configurados no espaço público, influenciados por produções artístico-culturais mobilizadoras de pautas de significados contra-hegemónicos. Ao articular dissidências e reivindicações antirracistas com elementos estéticos, produções culturais, como as ligadas ao hip-hop, abrem caminho para que jovens de bairros segregados ponham em ação pedagogias alternativas. Os inovadores projetos implementados pela Associação Khapaz, as letras musicais de rappers da Cova da Moura e Arrentela, bem como as visitas de arte urbana feitas pelos guias comunitários da Quinta do Mocho vão nesse sentido, pois criam um espaço de reflexão sobre as suas vidas enaltecedor de referências históricas, culturais e étnicas que atuam também como fonte de aprendizagem. Estas são um recurso valioso para a construção de identidades positivas e a interação com o mundo, ao reinventarem um “nós” com materiais simbólicos que estimulam a autoestima ao mesmo tempo que lhes facilita o acesso às múltiplas “redes de significados” presentes na cidade (Geertz, 2008). A politização da esfera artística repercute-se, assim, em produções musicais e estéticas que incorporam em seus projetos criativos uma perspectiva crítica às instituições do “mundo dos adultos” e à estigmatização a que são sujeitos. Em ambos os casos, tais conexões promovem aprendizagens informais capazes de desencadear práticas de ação coletiva valorizadoras das identidades negras em oposição aos estereótipos que seguem subalternizando os grupos racializados.
Finalmente, as produções artísticas analisadas fazem parte de um circuito cultural bem mais amplo, que não apenas conecta os bairros da periferia de Lisboa, mas que também é transnacional e diaspórico. Ao terem a capital portuguesa como vértice de intercâmbios culturais que valorizam o Atlântico Negro (Gilroy, 2001), essas produções reposicionam o papel de agência das populações afrodescentes, visibilizando uma Afro-Lisboa que reconfigura o papel da “raça” nas questões relacionadas à cidadania, marginalidade e educação no Portugal pós-colonial.
Referências Bibliográficas
Artigo pubicado originalmente na Medi@ções – Revista OnLine da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, Cristina Roldão (coord), v. 7, n. 2 (2019): Educação (anti)racista: Que políticas, práticas e perspectivas?