Coordenador do Laboratório de Alternativas Institucionais (LAI) da Universidade Federal Fluminense, o cientista político Carlos Sávio Gomes Teixeira, um dos organizadores do livro “Bolsonarismo: teoria e prática”, lançado recentemente, conversou por vídeo-chamada com exclusividade com o Alice News acerca do fenômeno do bolsonarismo e seus desdobramentos sobre a vida política e social brasileira. O pesquisador também falou de outros temas como as eleições norte-americanas e a pandemia.
Manifestação ocorrida em 31/05/2020, em Brasília, com a participação de Jair Bolsonaro.
Segue a entrevista.
O protagonismo dos evangélicos e o impacto cada vez maior das mídias sociais, são alguns dentre outros fatores que o livro “Bolsonarismo: teoria e prática” destaca na emergência de movimentos do conservadorismo brasileiro que foram capitalizados pelo bolsonarismo. Para quais outros aspectos o conjunto dos autores do livro chama a atenção neste momento em que chegamos a metade do mandato presidencial?
O livro “Bolsonarismo: teoria e prática” tenta entender os aspectos teóricos que levaram à ascensão do bolsonarismo, bem como suas práticas na pré-campanha, durante a campanha e no governo. Além dessa mobilização evangélica e das fake news através das mídias sociais, há um contexto de fundo para a ascensão do bolsonarismo que é uma “rebelião de direita” que começa com as manifestações de junho de 2013 e tem seu auge com a eleição de Bolsonaro em outubro de 2018. O “epicentro” desta rebelião é a questão da corrupção, contudo, está a ela atrelado um ataque, pela direita, à ordem institucional pós-1988 que muito prometeu, mas que entregou poucos resultados. Eu mesmo também a critico, mas em uma perspectiva bem distinta a essa do bolsonarismo.
Além deste “esgarçamento” da ordem pós-1988, há um conjunto de capítulos no livro que aborda questões como as chamadas “guerras culturais”, mobilizadas pelo bolsonarismo, bem como a reaglutinação de vários movimentos de direita no Brasil, dado que entendemos o bolsonarismo como um conjunto de frações bem distintas dos setores conservadores, mas que nele encontraram um denominador comum. Outro ponto-chave é a questão relativa à moralização da política, resultante de uma crise programática da esquerda contemporânea que tem sido, de maneira geral, incapaz de apresentar uma linguagem alternativa às narrativas da globalização e do neoliberalismo, pois ao aceitarem tais narrativas, propõem apenas “açucarar”, ou seja, atenuar suas consequências negativas, o que a meu ver, gera uma crise programática que abre caminho para essa narrativa da moralização da política.
Mais um tema fascinante no livro é a relação do bolsonarismo com as classes populares, quando mostra como que parte importante da base social do lulismo migra para o bolsonarismo, com destaque para os evangélicos – sobre os quais há um capítulo específico no livro – com quem Bolsonaro tem uma profunda relação, pois, mesmo sendo católico, ele se “converte” ao mundo evangélico no período pré-eleitoral. Neste contexto, este conjunto de fatores demonstra que Bolsonaro tirou proveito destas circunstâncias e conseguiu vencer as eleições. Diferentemente de mim que escrevi artigos sobre isso, muitos colegas analistas políticos pensavam que Bolsonaro não concluiria essa primeira metade do mandato. Além de ter chegado até aqui, as pesquisas de avaliação do governo tem mostrado que ele está em uma situação que podemos dizer até que é razoavelmente estável.
“Bolsonarismo: teoria e prática” (2020): livro lançado em 03 de dezembro (Gramma Editora).
Carlos Sávio Teixeira e Geraldo Tadeu Monteiro (Orgs.).
Em que pese os contextos locais, trumpismo e bolsonarismo são vistos como frutos de circunstâncias históricas e políticas similares. Mesmo tendo recebido um número de votos maior do que em 2016, Trump foi derrotado ao fim do seu primeiro mandato. Na sua visão, fatores como a inoperância na entrega de políticas públicas e as acusações que se avolumam sobre o governo e seus familiares farão com que o bolsonarismo encontre um Brasil avesso a ele em 2022, ao contrário do ambiente de 2018, ou a sua capacidade de resiliência não deve ser subestimada?
A comparação entre Trump e Bolsonaro me parece ter um elemento que as análises não levaram em consideração. A pandemia encontrou os EUA em franca recuperação econômica, o que me leva a pensar que, se não fosse isso, provavelmente Trump seria reeleito, talvez até com alguma facilidade. Em relação a Bolsonaro, ao contrário, a pandemia atinge seu governo em um momento em que o Brasil já estava em recessão econômica e com desemprego em alta. Além disso, também considero que as expectativas sociais nos EUA são muito maiores, na média, do que no Brasil, então as respostas dadas por Trump na base da inépcia, cobraram dele um preço muito maior do que estão cobrando de Bolsonaro, já que o nível de expectativas dos brasileiros em relação à ação do Estado é bem mais baixa do que a dos norte-americanos em geral, o que fez a pandemia ser muito devastadora para Trump em termos políticos.
Daí fica a questão: como chegará Bolsonaro em 2022, imaginando que a situação socioeconômica continue desfavorável com desemprego e baixo crescimento econômico? Imaginava-se que hoje ele já estaria pior avaliado, mas não está, porque sua avaliação segue razoável e, se as eleições fossem nos próximos meses, ele entraria como um candidato bastante competitivo à reeleição. Mas, onde está a resiliência de Bolsonaro? Claramente ela não está na entrega de resultados e de serviços públicos. A meu ver, sua resiliência vem de uma estratégia bem sucedida de comunicação, a qual passa pelo chamado “gabinete do ódio” e é mantida na base da guerra cultural, claro que agora em uma perspectiva bastante diferente do contexto pré-eleitoral, porém muito bem adaptada. E essa capacidade de adaptação do bolsonarismo é o que mais me surpreende, pois mesmo no governo ele consegue adaptar sua narrativa antissistema e antipolítica, sendo ele parte do sistema e da política nesse momento. Essa capacidade de adaptação ficou bem clara quando da intenção frustrada de golpe, expressa nos ataques a instituições como o STF e o Congresso Nacional, que teve seu auge entre os meses de abril e maio deste ano, mas que foram neutralizadas por meio de reações das instituições, como as investigações sobre as fake news e os atos antidemocráticos, feitas pelo STF.
Alguns grupos são muito importantes nessa capacidade de resiliência do bolsonarismo, o principal deles é provavelmente o segmento evangélico que não retira o seu apoio a Bolsonaro, além dos setores populares das regiões metropolitanas do país, dado que Bolsonaro faz a eles um aceno a partir da distorcida ideia de uma “autoconstrução individual”, cuja Teologia da Prosperidade evangélica é uma de suas principais expressões.
Por outro lado, destaco ainda a incapacidade das três principais forças que se opõem politicamente a Bolsonaro: o petismo, que tenta se apresentar mais explicitamente como uma alternativa a Bolsonaro, mas que foi quem menos obteve o respaldo eleitoral para tal nas eleições municipais no mês de novembro; Ciro Gomes e o assim chamado nacional-trabalhismo, que possui consistência programática, mas uma imensa dificuldade em se comunicar com a maioria; e ainda os ditos liberais, capitaneados pelo PSDB e pela Rede Globo e que fazem um apelo inócuo ao “centro” e à moderação, mas que também tem se mostrado incapazes de enfrentar Bolsonaro até agora. Assim, sem dúvidas, há uma relação dialética entre essa incapacidade do conjunto da oposição e a resiliência do bolsonarismo. Deste modo, 2022 está em aberto, até porque as eleições municipais foram bastante inconclusivas em relação ao que podemos esperar para daqui a dois anos. Mas podemos ver que, mesmo Bolsonaro não tendo conseguido criar um partido político para mobilizar a sua base social e ideológica, esta base dispersa se aglutinou em partidos como Republicanos, Patriotas, PSL e PRTB, os quais representam o núcleo-duro ideológico do bolsonarismo e que aumentou significativamente o número de prefeituras que irão governar a partir de janeiro de 2021. Isso mostra, em grande medida, essa capacidade de resiliência do bolsonarismo colocada na sua pergunta. Bolsonaro tem grande capacidade de mobilização, contudo possui muita dificuldade em organizar institucionalmente a energia dessa mobilização. Exemplo disso é o fato de que ele como presidente da república não conseguiu sequer criar um partido, o que é algo impressionante, conforme destaquei.
Uma última questão. Grandes acontecimentos do século XX, como a II Guerra e a Guerra Fria, ensejaram novos pactos sociais em países centrais e ao menos essa aspiração nos países periféricos. Você percebe que no Brasil de hoje o bolsonarismo bloqueia a possibilidade de transformações institucionais a partir da crise gerada pela pandemia? A insistência na “falta de alternativas” em termos de política econômica pode fazer com que as consequências desta crise deslegitimem o bolsonarismo no médio prazo?
Geralmente as crises são mesmo acontecimentos que ensejam mudanças. Mas no Brasil contemporâneo há um consenso absurdo por parte da elite de que um projeto nacional possa ser substituído pela prática do realismo fiscal, como se isso fosse atrair investimentos externos e que estes gerariam prosperidade econômica interna. O grande problema é que este consenso não passa de uma ideologia, dado que não encontra qualquer respaldo em alguma experiência histórica contemporânea.
Quanto a Bolsonaro, este só possui como projeto discernível o autoritarismo e secundariamente, uma volta a um tradicionalismo brasileiro, o que na sua visão e de seus apoiadores seria uma volta a “Era de Ouro” do Brasil, o que não passa de uma resposta um tanto confusa ao assim chamado “pós-modernismo”, ou seja, as transformações na agenda do comportamento e da moral, o que tem gerado matéria-prima para a guerra cultural por parte dos bolsonaristas contra o que eles chamam de “marxismo cultural”. Assim, seu projeto é essa síntese de autoritarismo com tradicionalismo. Já em termos de economia há uma aposta, sem muita confiança, no neoliberalismo de Paulo Guedes, dado que Bolsonaro não é um neoliberal de mais longa data, pois toda sua atuação como deputado ao longo de três décadas foi contra essa agenda, em especial no governo Fernando Henrique Cardoso. Bolsonaro é um “corporativista amesquinhado”, que sempre se ocupou de temas menores como pensões para militares, por exemplo.
Mas, para ir direto ao ponto: na minha leitura, o destino do bolsonarismo não está atrelado ao desfecho da pandemia. Vejo até que a pandemia foi um acontecimento que permitiu que Bolsonaro ganhasse fôlego, porque se não fosse essa circunstância, ele dificilmente encontraria desculpas para justificar uma situação econômica que já vinha muito mal. As angústias e medos das consequências econômicas da pandemia foram aproveitadas por ele para mobilizar seus seguidores e ganhar certo fôlego, porque desse modo ele consegue naturalizar a ideia de que a crise econômica é resultado da crise causada pelo vírus, mesmo que antes da pandemia a situação econômica já estivesse deteriorada por conta da orientação errática dada por seu governo através da figura de Paulo Guedes.
Leonardo Almeida da Silva é Doutor em Ciência Política e Professor na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT-Cáceres). Membro do Conselho Editorial Alice News (Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra).