Este conteúdo faz parte da série "Direitos Migratórios" para assinalar o 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Estas contribuições são elaboradas pelo Grupo Inter-Temático sobre Migração (ITM), do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Immigrants are the only ones who can tell us about the territories
they have inhabited in their past, the ones they found when they arrived
here, and where they want to go next.
(Falicov, 2014)
Três de outubro de 2013: um naufrágio ao largo da ilha de Lampedusa provocou a morte a 368 migrantes que, em concordância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), procuravam liberdade, igualdade, reconhecimento de existência e proteção.
O conceito de migração forçada tem sido amplamente discutido em diversas áreas do saber, sendo a sua definição ainda pouco consensual. A literatura diferencia conceptualmente migrantes de refugiados, considerando que estes últimos são migrantes forçados por questões relacionadas, por exemplo, com perseguições políticas, raciais e/ou ideológicas. Porém, nem todos os migrantes que saem do seu país de origem terão o direito ao estatuto de refugiado, ainda que a saída possa não ser percecionada como uma escolha. Neste sentido, questiona-se a diferenciação migrante e refugiado, podendo esta conceptualização representar, por si só, uma contradição face aos enunciados descritos na DUDH.
Em 1986, Shacknove caracterizou os refugiados como pessoas cujas necessidades básicas não são satisfeitas pelo seu país de origem conduzindo, por esse motivo, à procura de ajuda internacional por via da migração. Apesar de se tratar de uma definição balizadora, parece vaga naquilo que é a clarificação do termo “necessidades básicas”, retirando ênfase à multiplicidade de razões que podem justificar a saída forçada do país de origem. Por exemplo, muitos são os migrantes que atualmente abandonam o seu países de origem por motivos relacionados com insatisfação com ideais políticos, sem que possam reivindicar o estatuto de refugiado (e.g., migrantes que nos últimos quatro anos têm saído da Venezuela). O processo de migração é, assim, complexo, estando na sua base eventos multideterminados que resultam da interseção entre fatores económicos, políticos, sociais e familiares. Atendendo à sua complexidade, importa olhar para o fenómeno da migração de um ponto de vista psicológico dado que, além dos motivos que justificam a migração, há que considerar as consequências deste evento atendendo aos custos e ganhos emocionais associados.
Independentemente do reconhecimento ou não do estatuto de refugiado, a literatura é clara quanto às perdas comuns sentidas e experienciadas na sequência de uma migração forçada, sendo elas de ordem física, social e cultural. Em 2014, Falicov enunciou algumas: (a) perda física de um contexto rotineiro e familiar (e.g., os vizinhos, a casa, as ruas, a comida), isto é, desaparecimento do cenário interno e externo que define parte da identidade da pessoa; (b) perda e necessidade de reconstrução da rede social de apoio, sendo, a este nível, muito relevante considerar os aspetos relacionados com a discriminação social face à migração; e (c) o confronto com valores culturais distintos e perda de identidade ao nível da língua que se fala. A este respeito, a literatura empírica revela que a exposição abrupta e massiva à novidade em termos de língua, costumes/hábitos, estilos de vida e crenças culturais são potentes precipitantes de sintomatologia psicopatológica em populações migrantes.
Estas perdas envolvem, necessariamente, processos de luto tão ou mais dolorosos como aqueles que se fazem perante a morte de um ente querido, com a ambiguidade de se saber que tudo continua vivo, embora distante (no espaço e progressivamente no tempo). Esta ambiguidade faz-se sentir nas (pequenas) paradoxalidades da migração: a tristeza de deixar o país de origem vs. a idealização de um país que poderá proporcionar melhores condições de vida; a saudade dos amigos e familiares vs. a expectativa sobre aqueles que se conhecem à chegada; a ocupação profissional que se abandonou vs. a oportunidade de iniciar uma nova vida profissional; entre outros. Deste modo, é incontornável assumir-se que o processo de migração encerra, também, oportunidades positivas de mudança, nomeadamente em termos económicos, sociais, de saúde e de educação.
É no equilíbrio entre as perdas e os ganhos que a adaptação ao país recetor se operacionaliza, suportada num constructo psicológico chave: resiliência. Masten (2014) define este constructo como a capacidade que um sistema dinâmico (e.g., família, indivíduo) tem para se adaptar de forma bem-sucedida a desequilíbrios que ameaçam o seu funcionamento e/ou desenvolvimento. Desta forma, migrantes resilientes tendem a manter, de forma seletiva e propositada, parte das suas narrativas culturais, com vista a restaurar o sentido de continuidade e coerência com o seu passado. Autores sugerem que a manutenção e/ou criação de rituais (e.g., comemoração de datas significativas no país de origem) representa uma forma resiliente de fazer face ao stress suscitado pelo processo de migração. (Re)criar significados e propósitos perante a mudança é essencial para que o sentido de identidade cultural seja preservado.
A resiliência não é um constructo estático e, nesse sentido, a sua manifestação varia em função da interação entre o sujeito e o contexto no qual está inserido. Num processo de migração forçada, a adaptação tende a ser tão melhor quanto melhor for: (a) a perceção de que se é capaz de superar as probabilidades, (b) a perceção de que se é capaz de fazer frente a uma situação de risco/pressão e (c) a capacidade de integrar nas narrativas, de forma construtiva, os eventos mais negativos relacionados com a migração. Naturalmente, os agentes sociais são altamente responsáveis pelo favorecimento de uma abordagem resiliente perante o processo migratório (para além de atributos individuais e do ambiente familiar do indivíduo). Nesse sentido, é fundamental que a sociedade procure estabelecer um equilíbrio entre os estereótipos culturais e as especificidades de cada migrante. Numa ótica construtivista, deve favorecer-se uma narrativa baseada nas visões múltiplas sobre o mesmo fenómeno, tendo presente que uma cultura reflete apenas e só um nicho ecológico, isto é, a cultura representa um contexto no qual é privilegiada uma visão específica e restrita sobre a realidade. Existe, porém, uma multiplicidade de possibilidades de compreensão que devem ser contempladas quando nos deparamos com a integração de pessoas de culturas diferentes relativamente à de quem recebe. Além disto, pensar nos migrantes como estando desenraizados e órfãos de país, promove uma visão deficitária das suas competências e, nesse sentido, urge uma mudança discursiva sobre este processo, particularmente quando abandonar o país de origem se constitui como uma necessidade de sobrevivência, mais do que uma opção.
De acordo com o artigo três da DUDH, “todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Neste sentido, mais importante do que diferenciar ou identificar os motivos que conduzem à migração (debate migrante vs. refugiado), é essencial que se considere o fenómeno da migração sob vários prismas, não negligenciando a dimensão psicológica, fundamental para promover a passagem da resistência à resiliência daqueles que chegam e daqueles que recebem.
Alda Portugal
Doutorada em Psicologia Clínica pelas Universidades de Coimbra e de Lisboa (regime de associação). Atualmente é Professora Auxiliar Convidada da Universidade da Madeira e Investigadora Associada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Os interesses de investigação têm-se debruçado sobre temáticas relacionadas com a Psicologia da Família e, mais recentemente, na relação entre o funcionamento familiar e os movimentos migratórios. É autora de artigos científicos publicados em revistas com revisão por pares e capítulos de livros. Participou, enquanto oradora, em diversos encontros nacionais e internacionais.
Luciana Sotero
Licenciada em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra (FPCEUC) e doutorada em Psicologia Clínica pelas Universidades de Coimbra e Lisboa. Atualmente é Professora Auxiliar Convidada na FPCEUC e investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Publicou diversos trabalhos e proferiu várias conferências no âmbito dos seus interesses de investigação: processos familiares de stress e resiliência em situações de crise (e.g., transição para a idade adulta, migrações, condições crónicas de doença, etc.), interfaces entre as tecnologias de informação e comunicação (TICs) e o sistema familiar e o processo terapêutico em terapia familiar.