Não tem sido fácil ser mulher lésbica no Brasil! A Organização Não Governamental Grupo Gay da Bahia (GGB), que atua no mapeamento de homicídios contra a população LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexo), indicou que, em 2018, tivemos 420 mortes de LGBTI neste país (320 assassinatos e 100 suicídios). Ainda, de acordo com ONG Transgender Europe (TGEU), o Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais.
Contudo, apesar de tanta violência, na última década tivemos importantes conquistas e ampliação de direitos e espaços para a população LGBTI na sociedade brasileira.
Em 2011, por exemplo, conquistamos, por meio de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, o direito de registrar a união estável entre casais homoafetivos. Em 2013, os cartórios brasileiros passaram a ser obrigados a realizar a conversão de uniões estáveis homoafetivas em casamento civil. Em 2018, pessoas transgênero passaram a ter o direito de alterar prenome e gênero diretamente no cartório, se assim o desejarem, independente de cirurgia de redesignação ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes.
Em junho de 2019, comemoramos a mais recente conquista de direitos da população LGBTI no Brasil, advinda de decisão do Supremo Tribunal Federal, que é a criminalização da homolesbotransfobia, com a inclusão desta na lei que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Além destas conquistas em âmbito do Poder Judiciário, podemos citar algumas conquistas do Poder Executivo, onde há grandes possibilidades de atuação no combate e prevenção da violência contra a população LGBTI, por meio de investimento no desenvolvimento de Políticas Públicas que promovam a vida digna desta parcela da população. Assim, podemos citar a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) que tem por objetivo promover a saúde integral LGBT, buscando eliminar a discriminação e o preconceito institucional, bem como contribuir para a redução das desigualdades e a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) como sistema universal, integral e equitativo.
Ademais, o Processo Transexualizador, em que pese haja poucas vagas disponíveis, é realizado gratuitamente pelo SUS garantindo o atendimento integral de saúde às pessoas transexuais, incluindo acolhimento e acesso com respeito aos serviços de Saúde, desde o uso do nome social, passando pelo acesso à hormonioterapia, até a cirurgia de adequação do corpo biológico à identidade de gênero e social.
Diante destas conquistas, recordamos a socióloga Heleieth Saffioti para tentarmos entender os altos índices de violência contra as LGBTI. Pois bem, para ela, a violência de gênero consiste em um padrão específico de violência baseada na hierarquia e na desigualdade de lugares sociais sexuados, que subalternizam as mulheres, ampliando-se e tornando-se atual, de forma diretamente proporcional à ameaça ao poder masculino. Quanto mais esse poder patriarcal é ameaçado, mais forte é a reação contrária, no sentido de manter a ordem como está, na tentativa violenta de barrar direitos e conquistas.
Dessa forma, os retrocessos podem ser percebidos como uma reação às conquistas de direitos. Assim, é bastante emblemática a eleição de Jair Bolsonaro como presidente, apesar de seu histórico de posicionamentos homofóbicos durante toda sua trajetória política.
Damares Alves, atual ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, na cerimônia de transmissão de cargo do Ministério, declarou que o Brasil estava entrando em uma nova era e que, a partir daquele momento, em suas palavras: “Menino veste azul e menina veste rosa!”.
Desta forma, o Brasil governado por Bolsonaro tem demonstrado que a população LGBTI não é muito bem-vinda nesta “nova era”. Por exemplo, ao estabelecer a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, em seu primeiro ato como presidente, a população LGBTI não foi mencionada nem uma única vez.
Ainda, marcando os retrocessos, não podemos nos esquecer de Marielle Franco. Ela era mulher negra, da favela, mãe, bissexual, socióloga, vereadora eleita pelo Rio de Janeiro, que dedicou sua vida a lutar contra a desigualdade e pelos direitos das mulheres, do povo preto, da favela, das pessoas LGBTIs e de todas que viviam qualquer forma de opressão. Em 14 de março de 2018, ela foi covardemente assassinada em um atentado ao carro onde estava. Foram disparados 13 tiros que atingiram o veículo e mataram, também, o motorista Anderson Pedro Gomes. Até hoje não temos resposta à pergunta: Quem mandou matar Marielle?
Tampouco podemos deixar de mencionar a renúncia do ex-deputado federal Jean Wyllys, que precisou desistir de tomar posse do seu terceiro mandato em decorrência das sistemáticas ameaças de morte que vinha sofrendo e, para preservar sua vida, decidiu estabelecer residência fora do Brasil. Durante seus dois mandatos, Jean Wyllys sofreu inúmeras discriminações homofóbicas por parte do atual presidente e de seus filhos.
No entanto, nossa história da busca por direitos é feita de muitas lutas, mobilização social e resistência. Ela está marcada pelo derramamento de muito sangue, suor, lágrimas e, infelizmente, em muitos casos, pela perda da vida de ativistas que, ao longo da história, denunciaram as violências sofridas, sobretudo pelo Estado, e que resistiram buscando formas de construir uma sociedade mais inclusiva na qual as vidas das pessoas LGBTI importem tanto quanto qualquer outra vida.
Relembramos a resistência de pessoas LGBTI na época da ditadura brasileira (1964-1985), que ocorreu de fato, embora Bolsonaro a negue. Durante este período foram torturadas mais de 20 mil pessoas e outras 434 foram mortas ou desapareceram às mãos dos militares. Essa resistência permitiu que, ao final dos anos 70, grupos de pessoas LGBTI se unissem à luta pela redemocratização, contra a opressão do Estado e pela ampliação de direitos. Por isso, durante a Assembleia Nacional Constituinte, em 1988, houve a participação ativa de movimentos LGBTI, coordenados pelo grupo Triângulo Rosa, com a finalidade de apresentarem as demandas específicas de direitos da população LGBTI. Contudo, além da igualdade entre homens e mulheres, poucas foram as conquistas legais das pessoas LGBTI junto aos parlamentares naquela ocasião.
Porém, os movimentos LGBTI permaneceram na luta e conseguimos ampliar a representatividade de pessoas LGBTI na sociedade. Por exemplo, em 2018 houve um aumento de quase 386% no número de candidatos e candidatas LGBTI para o Poder Legislativo estadual e federal em relação às eleições de 2014. Tivemos 160 candidaturas LGBTI, que resultaram na eleição de 08 pessoas no Brasil todo, sendo que 06 delas estão ocupando as Assembleias Legislativas de São Paulo, Distrito Federal e Pernambuco, 01 deputado federal e 01 senador. Dentre estes, podemos citar Erica Malunguinho da Silva, que foi eleita a primeira mulher trans a ocupar uma cadeira na conservadora Assembleia Legislativa de São Paulo, o que é um marco muito importante para o país.
Além disso, o aumento de representatividade da população LGBTI se expandiu não se limitando ao campo politico-partidário. Temos hoje diversos nomes com projeção local, nacional e internacional nos campos cultural, artístico, esportivo, acadêmico, científico etc.
Assim, sem dúvida, nossos direitos e representatividade foram conquistados com muita luta e, para mantê-los e, também, ampliá-los, seguiremos lutando e resistindo como temos feito ao longo de toda nossa história pois, é somente através da nossa resistência coletiva que vamos continuar avançando na efetivação dos direitos formalmente conquistados para seguirmos vivas e construindo uma sociedade mais justa e igualitária, para que o Brasil deixe de figurar em altas posições nas estatísticas de assassinatos de pessoas LGBTI.
Rute Alonso, advogada, feminista, lésbica. Vice presidenta da União de Mulheres de São Paulo e co-coordenadora das Promotoras Legais Populares. Coordenadora de um Centro de Defesa e Convivência de Mulheres na periferia de São Paulo. Amante de livros, cães e gatinhxs, mãe do coração de uma menina curiosa.