Este artigo faz parte de uma série de publicações de autoria da equipa de investigação do projeto DeOthering, publicada no Alice News com cadência mensal.
A ideia de “identidade europeia” bem como o significado que convencionalmente lhe é atribuído e lhe confere sentido têm sido amplamente questionados nos últimos dez anos. A crise do subprime que atravessou o Atlântico assumindo a forma de dívidas soberanas, os ataques terroristas em cidades europeias, como Oslo, Barcelona, Munique, Berlim, Bruxelas, Nice, Paris e Londres, o processo do Brexit e a chamada “crise migratória”, que desde a Primavera Árabe (e em particular desde a guerra na Síria) trouxe mais de um milhão de pessoas à Europa, são alguns dos acontecimentos e processos que abalaram o projeto político europeu como tinha sido até então consensualizado.
No contexto deste reequacionamento, abriu-se espaço para a (re)emergência de visões concorrentes sobre o que se entende ser “a Europa” e “ser-se europeu”, bem como as aspirações e os limites políticos de cada uma dessas identidades, sendo o tema dos/as migrantes/refugiados/as um dos eixos do atual debate político-identitário. Perante esta contenda, se houve um registo de movimentos cosmopolitas, solidários e inclusivos um pouco por toda a Europa, houve um ainda maior - e igualmente disseminado - de (re)emergência de retóricas nacionalistas e/ou étnico-religiosas excludentes assentes na dicotomia maniqueísta e homogeneizadora de “Nós” Vs. “Eles”.
Para a geração e veiculação destas narrativas racistas e/ou xenófobas, a criação de representações é nuclear. É de igual modo central controlar as possibilidades e a forma como o Outro é representado e os processos através dos quais as suas representações são produzidas. O jogo de representações nunca acontece no vazio, mas antes num espaço de poder já constituído e simultaneamente constitutivo. Neste tabuleiro, as representações dicotómicas resultam sempre de uma prática discursiva hegemónica que é tão mais eficaz quanto "o Outro" é silenciado e/ou securitizado.
Os media assumem um papel privilegiado na disputa de construção e validação de representações. Isto porque na impossibilidade de experienciarmos todas as realidades em primeira mão, confiamos, em grande medida, nos media para conhecer geografias, agendas e experiências que de outra forma não conheceríamos. Este processo de mediação assenta em processos de filtragem - gatekeeping - que ditam a informação que deve ser veiculada e qual perspetiva face a essa informação que é mais válida para o interesse público.
Atualmente, na esfera mediática europeia, as representações de migrantes/refugiados/as tendem a ser implícita ou explicitamente negativas, colocando habitualmente a ênfase nos problemas e nos alegados riscos que estas comunidades e grupos representam para os valores e os membros das sociedades de acolhimento na Europa.[1] Perante esta tendência esmagadoramente negativa, as redes sociais online - com a sua arquitetura e lógica democráticas e horizontais - podem ser entendidas como um espaço potencialmente reequilibrador de agency em termos de narrativas. Na verdade, a configuração do espaço online convida muitos mais participantes para o processo de seleção de agenda e enquadramento mediáticos, democratizando as práticas que Couldry cunhou de “voz como processo”, ou seja, o reconhecimento da capacidade de todos darem o seu testemunho contribuindo para o debate público e a ação política. Ao atribuir virtualmente a todos/as os/as utilizadores/as a possibilidade de produção de conteúdos, as redes sociais online conferem a migrantes e refugiados/as um espaço para darem o seu testemunho e de este ser disseminado sem intermediários, permitindo-lhes superar a invisibilidade e a alteridade securitizada que a paisagem mediática convencional lhes tem atribuído.
Porém, o registo de padrões generalizados de desinformação, invisibilidade e deturpação acontece com maior incidência precisamente nas redes sociais online. A verdade é que o ambiente online e o offline não são dissociáveis, mas antes confluentes, alimentando-se reciprocamente. O ambiente online, ainda que tenha uma produção de conteúdos tendencialmente mais democrática, não deixa de refletir e privilegiar os entendimentos hegemónicos sobre como deve ser definida uma determinada comunidade e identidade política. A confluência do online e do offline ganha expressão e tração no funcionamento das redes sociais online que se estruturam/assentam em algoritmos que, por sua vez, fazem a curadoria das informações a que temos acesso tendo como filtro os padrões de gostos e de interações de cada utilizador(a). Assim, o valor de cada informação disseminada é determinado não pela sua qualidade, espírito crítico, verosimilhança ou standard ético, mas sim pelas interações geradas. Tal lógica não só faz com que se criem as chamadas câmaras de eco (o que reforça a hegemonia), como abre espaço para a emergência de lógicas emotivas e populistas, reduzindo o espectro do debate e facilitando a propagação viral de representações consentâneas com informação falsa e/ou discurso de ódio. O poder de representação dos “novos gatekeepers” - i.e. redes sociais e algoritmos - é ainda mais marcado no contexto de crescente descrença nos media convencionais e num clima político e analítico de “pós-verdade”, ou seja, num ambiente em que os apelos à emoção, sobrevivência e às crenças vale mais do que factos objetivos na formação de opinião.
[1] Ver, por exemplo:
International Network for Hate Studies: http://www.internationalhatestudies.com/.
Chouliaraki, Lilie; Georgiou, Myria; Zaborowski, Rafal e Oomen, Wounter, “ Project Report: The European «migration crisis»? and the media. A cross-European press content analysis”. Disponível em: http://www.lse.ac.uk/media-and-communications/assets/documents/research/projects/media-and-migration/Migration-and-media-report-FINAL-June17.pdf. Acedido em 8 de abril 2019.
Pierigh, Francesca (2017) “Changing the narrative: Media representation of refugees and migrants in Europe”, Refugees Reporting. Disponível em: http://www.refugeesreporting.eu/wp-content/uploads/2017/10/Changing_the_Narrative_Media_Representation_of_Refugees_and_Migrants_in_Europe.pdf
Sofia José Santos é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde lidera como Investigadora Principal o projeto DeCodeM, e integra a equipa dos projetos DeOthering, EquiX e PARENT. É doutorada em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra e tem um diploma de estudos avançados em Ciências da Comunicação pelo ISCTE-IUL, onde está a prosseguir atualmente um segundo doutoramento na área dos Novos Media, Redes Sociais e Tecnologia.