Este texto tem por objetivo apresentar resultados, a partir de pesquisa de tese, sobre aspectos do sistema educacional brasileiro, em particular trajetória de estudantes negros/as do ensino superior/pós-graduação à luz das desigualdades de raça e racismo, situando-as no marco de políticas de igualdade de oportunidades (SILVA,2016). Nosso primeiro enfoque abordou as informações constantes do portal do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Plataforma Lattes), no que tange à promoção da igualdade racial no âmbito da Ciência e Tecnologia (C&T) no Brasil, prevista na Lei nº 12.288/2010(BRASIL, 2010).
A pesquisa apontou que a Plataforma solicita o preenchimento do campo cor/ “raça” no currículo, entende-se que a partir desta coleta de dados é possível realizar estudos que permitam mapear a participação dos grupos étnico-raciais na C & T, bem como acompanhar políticas de inclusão racial no país, além de estruturar outros programas e políticas para segmentos específicos quando necessário. Isoladamente, as informações colhidas, por certo, não favorecem o combate às desigualdades sociais e raciais, mas, se associadas a outros dados, podem se configurar em informações importantes para novos estudos sobre as relações raciais.
A pesquisa mostrou que a presença negra na universidade, além de reduzida, é desigual e restrita a algumas áreas. A herança do passado escravista não pode ser omitida quando se trata das desigualdades educacionais e profissionais no Brasil, o qual está associado à manutenção de um sistema político e educacional pouco democrático que reforçam as intensas desigualdades sociais. Portanto, a seletividade persistente do sistema educacional brasileiro justifica a adoção de políticas de ação afirmativa no ensino superior/pós-graduação no Brasil, bem como, a ampliação do quadro de docentes para suprir a demanda de professores/as orientadores/as que conheçam em profundidade o tema das relações étnico-raciais, e a oferta de disciplinas sobre o tema no ensino superior/pós-graduação. Ações como estas, poderiam romper o silêncio instaurado nas instituições de ensino superior, que quando discutido, muitas vezes vem acompanhado de estratégias associadas à naturalização (preconceito de classe sem preconceito racial).
Apreende-se políticas de ação afirmativa como uma intervenção em tempo delimitado, do Estado ou do setor privado, visando ao aumento acelerado da presença de membros de grupos sociais sub-representados em esferas da vida social, e com vistas à promoção da igualdade racial. Busca-se corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado de modo a concretizar o ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais e direitos de cidadania plena. Entende-se que a vida acadêmica também espelha as dinâmicas de desigualdade que movimentam a formação histórico-social brasileira.
O segundo enfoque assinalado refere-se às entrevistas realizadas. Os entrevistados são pertencentes a grupos de menor status socioeconômico e que tiveram que superar barreiras raciais e desigualdades sociais. No que se refere à família, identifica-se que a reduzida escolaridade dos pais não foi impedimento para que eles acompanhassem, orientassem e contribuíssem para a extensão dos estudos dos filhos. Desde a infância, os entrevistados tiveram um convívio com narrativas sobre racismo e desigualdades sociais no ambiente familiar e fora dele. Mas o fator cronológico é insuficiente para focalizar esta etapa da vida dos entrevistados, pois as diferentes formas de desigualdade não atingem as pessoas durante sua trajetória de vida da mesma forma e com o mesmo impacto. Apreende-se que, embora de modo diferente, as crianças estão expostas às mesmas estruturas e mecanismos sociais que os adultos. Tais estruturas e mecanismos sociais se tornaram mais evidentes no decorrer de suas trajetórias de vida pessoal/educacional.
No que tange a trajetória acadêmica, os entrevistados por um lado, contaram com apoios, a saber: a família; os amigos; o Estado; outras instituições (ONG’g), além do próprio esforço. Por outro lado, enfrentaram barreiras (racismo e discriminação), no âmbito educacional e fora dele. De modo geral, a população negra no Brasil tem várias barreiras que impedem o acesso à mobilidade educacional e social (segurança pública, sistema de saúde, transporte público de qualidade, habitação, emprego, educação de qualidade), isto é, com raras exceções, vivem em áreas desprovidas de infraestrutura e equipamentos públicos.
Outro assunto discutido na pesquisa se refere a Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003), que propõe novas diretrizes curriculares para o estudo da história e cultura afro-brasileira e africana. A Lei reflete a tensão presente na história das políticas educacionais do país, pois de um lado há políticas que visam a permanência do racismo estrutural que se revela pela invisibilidade da “raça” e pelo mito da democracia e, de outro, políticas frutos de lutas sociais que rompem com as primeiras. A Lei é fundamental para garantir uma ressignificação e valorização cultural das matrizes africanas que formam a diversidade cultural brasileira, além de oportunizar a revisão de programas e currículos quanto à diversidade cultural que se apresenta no Brasil no combate às desigualdades sociais. A nossa luta é para que as políticas de Estado no Brasil, garantidoras de direitos permaneçam em futuros governos. Os entrevistados vêm de um sistema educacional, em particular na universidade, em que as disciplinas obrigatórias com raras exceções abordam a temática das relações étnico-raciais, isto implica dificuldades para o desenvolvimento de pesquisas. Vale ressaltar a importância do monitoramento dos indicadores que viabilizem a dinâmica das desigualdades raciais para subsidiar decisões por parte de diversos agentes nas esferas públicas e privadas.
Verificou-se ainda que parte dos entrevistados exerceu atividade laboral durante a formação superior/pós-graduação. Se por um lado, isto pode favorecer o processo de emancipação familiar, por outro lado, aponta-se que eles trabalharam para custear sustento pessoal e familiar. Isto pode ser explicado pela limitação do número e de valores das bolsas de estudos em programas de pós-graduação, incompatíveis com as necessidades materiais dos pesquisadores.
Os entrevistados compartilham do conceito de “raça” como uma construção social e um conceito analítico fundamental para a compreensão de desigualdades socioestruturais e simbólicas observadas na sociedade brasileira. Mas ressaltam que nas relações sociais, o termo “raça” é utilizado com frequência para justificar como determinadas características físicas (cor de pele, tipo de cabelo), influenciam, interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar social dos sujeitos na sociedade brasileira.
No que se refere ao racismo, os entrevistados entendem que no plano simbólico, o racismo se manifesta via adoção da crença (ou ideologia) da superioridade “natural” de um grupo racial sobre outro (do branco em relação a grupos de racializados). No plano estrutural, o racismo consiste no sistemático acesso desigual a bens materiais entre os diferentes segmentos raciais. Esta conceituação considera o preconceito interpessoal como apenas uma das possíveis manifestações do racismo.
Assim, este texto dialoga também com as dimensões da exclusão social abrangendo as dimensões: objetiva, referente à desigualdade social; ética, referente às injustiças sociais; subjetiva, referente ao sofrimento ético-político produzido pela exclusão social (SAWAIA, 2013).
Referências
Marcos Antonio Batista da Silva é doutor em Psicologia Social pela PUC-SP. Investigador em pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra(CES), Portugal, onde integra o projeto POLITICS “A política de antirracismo na Europa e na América Latina: produção de conhecimento, decisão política e lutas coletivas. Financiamento: European Research Council.