A democracia enquanto comunidade humana atinge seu ápice ao evitar excessos de civilização. Tais excessos aqui são trabalhados a partir da formulação de Adorno (1966)[1] ao deduzir que a barbárie deriva da semiformação social, produtora última da violência que dialeticamente a própria civilização visa combater. Esses excessos são resultados da sociedade moderna que todos os dias apresentam demandas inacabadas e urgentes. Ranciere (2014:11) atesta que a “democracia boa, reprime a catástrofe” justamente porque os desejos ilimitados devem passar pelo funil das decisões democráticas. Nesse processo, a democracia sendo o filtro precisa ser ampliada.
Mas o que ocorre se o filtro da democracia não for ampliado? Experimente fechar o fundo de um funil, em seguida enchê-lo de água. Rapidamente o excesso transbordará desperdiçando o líquido que pode ser raro. Essa metáfora serve como exemplo, se o filtro da democracia não for ampliado, podemos despencar num excesso de civilização, na concepção de Adorno, nos levando ao um cenário arenoso onde os limites sociais são profundamente testados. Nesse campo, não há espaço para o debate, discussão ou encaminhamentos. A disputa sai da arena da política e firma-se no uso da força e do medo. O processo eleitoral brasileiro pode nos ajudar a ampliar a compreensão melhor esta situação. Por lá, a principal pauta é a legitimação da força pelo medo da violência. Mas não só, com o extremismo impresso nos últimos dias, a utilização de uma arma é o símbolo mais utilizado por um grupo em detrimento ao outro, numa clara apologia a força enquanto estratégia de imposição e/ou superação do medo.
No campo prático a democracia precisa ser ampliada devido à renovação das demandas. Exemplos simples como o debate sobre o novo conceito de família, as questões relacionadas a gênero e a própria ideia de religião, tendem a exigir novas abordagens pedagógicas. Sem falar das demandas ditas transversais, ou seja, quando pessoas do mesmo sexo pautam o direito ao casamento civil. Quando a renda digna ecoa na África e volta a ameaçar os brasileiros. Quando no Oriente Médio busca-se acomodar os interesses petrolíferos na ribalta da crise ambiental e as feministas traçam estratégias para deslocar a pauta do aborto das questões policiais para as questões de saúde pública. Não podemos hierarquizar cada movimento. Todos são importantes e o caminho passa por uma ampla democracia.
Ao nos aproximarmos ao contexto brasileiro percebemos o que a atual conjuntura política tem exposto: uma polarização entre duas candidaturas como síntese de dois modelos antagônicos. Com a democracia golpeada e ainda sangrando, o atual processo eleitoral abandonou o campo já esfumaçado entre direita e esquerda e avançou para o abismo do fascismo. Perigosamente a elite brasileira está a fechar o fundo do funil, e sem se dar conta pode esbarrar no axioma também utilizado por Oliveira (2010) denominado de “excesso civilizatório”.
Tal dinâmica é a tradução do reducionismo a que foi levada a democracia. Aquilo que Boaventura de Sousa Santos chamou de “Democracia de Baixa Intensidade”. A robotização democrática se impõe num pantanoso espaço do nivelamento rasteiro em que a sociedade é reduzida ao debate contra a “corrupção”, mas não vai à miúde nos trâmites que promovem a corrupção. Esse movimento só tem um objetivo: provocar a saída do cidadão da esfera pública. Nesse esteio os atores sociais são demovidos da participação ativa na política. Desmobilizados, vão ficando cada vez mais longe da real disputa social. Feito manada são convencidos a seguirem o caminho do (des)envolvimento, bem longe da democracia. Enojados e cansados se dão por vencidos e o indivíduo aceita a pecha do não ator, sentindo-se moralmente superior ao ser identificado com o não-politico. Não percebe que para lutar contra a corrupção é preciso ampliar a democracia.
Logo em seguida, o indivíduo sem participação efetiva é bombardeado por um conjunto de desinformações que a dois turnos desempenham a tarefa de mantê-lo à distância e fazê-lo identificar o “inimigo”. Aqui uma verdadeira massa de manobra é diariamente treinada a se identificar com o conservadorismo de pautas morais e no momento oportuno ser capaz de “defender” a civilização. Ranciere (2014:10) argumenta “que nesse momento há um profundo risco da mobilização de sujeitos apáticos se apresentarem para defender os valores morais”. Essas pessoas são levadas a agir com base no fundamentalismo da transparência. A democracia cede espaço ao “reino dos excessos” onde tudo vale!
Como reconhecer esse processo? É relativamente fácil, porém doloroso. Isso ocorre quando o discurso de ódio vale mais que a paz. Quando o sujeito aceita substituir sua liberdade pela manutenção da moral que lhe aprisiona na Idade Média. Quando a religião é usada contra seus princípios mais básicos, sem que o crente o perceba. Em suma, quando o torturado é capaz de apoiar a torturador é porque houve uma profunda perturbação da estética social, que chamamos aqui de histerismo social. Esse processo ocorre quando um mulato brasileiro reproduz o gesto da suástica alemã sem perceber que aquele movimento reúne uma simbologia que não apenas lhe excluí, como visa eliminá-lo.
Com fúria a democracia a sociedade não consegue ir ao radical do problema, e estabelece pouso na superficialidade do extremismo. Campo dominado pelo ódio, pela raiva e pela condenação prévia. O ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo, muito nos fala sobre isso. O extremismo ao substituir a radicalidade, e tendo sido estabelecido como ethos, passa a ser mediado pela régua da força e do medo, em que a barbárie bate a porta para apresentar o excesso de civilização.
Com isso deixo apenas uma pergunta: vamos ampliar a democracia ou vamos caminhar ao excesso de civilização?
Referências
OLIVEIRA, M. A. D. (2010). Ética, direito e democracia. São Paulo: Paulus.
RANCIERE, J. (2014) ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar – 1º Ed. – São Paulo: Boitempo.
SANTOS, B.S. (2017) “Vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas, Geledes, Artigo de Opinião, 1 de maio 2017. Disponível em https://www.geledes.org.br/vivemos-em-sociedades-politicamente-democraticas-mas-socialmente-fascistas-por-boaventura-de-sousa-santos/.
Rafael dos Santos da Silva é Professor na Universidade Federal do Ceará - UFC e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra – UC.